sexta-feira, 12 de novembro de 2010

O grito autobiográfico de Wendy Guerra

Segue a resenha sobre o livro Nunca Fui Primeira-Dama, da cubana Wendy Guerra. Escrevi esse texto para o curso de Jornalismo Cultural, ministrado no Espaço CultCasper pelo jornalista Daniel Piza, de O Estado de S.Paulo.


Difícil discernir o que é ficção e realidade no livro Nunca Fui Primeira-Dama (Benvirá, 256 páginas), segundo romance da também poeta cubana Wendy Guerra. Ao utilizar diversos recursos de narrativa (diários – que já usou em seu primeiro romance, Todos se Van –, transcrição de programas de rádio, radionovela, cartas e anotações), a autora traz o público para bem perto de si e do povo cubano pré e pós-revolução de 1959, ao escrever grande parte do livro em primeira pessoa e em tom confessional, sob o alter ego Nadia Guerra.

A história gira em torno de Nadia, uma artista plástica e radialista que vive com o pai, já que a mãe, Albis Torres, foi embora. fugindo da revolução de Fidel Castro, quando ela tinha apenas 10 anos – algo que realmente aconteceu. Nadia começa a se questionar a respeito de como seria sua mãe, também radialista, e decide procurá-la.
A facilidade com que Nadia encontra a mãe, em Moscou, traz ao leitor a sensação de incredulidade, já que, para tanto, ela se corresponde por cartas com antigos amigos de Albis que mal sabiam o paradeiro dela. Após o encontro de Nadia com a mãe, que não mais anda e é vítima do Mal de Alzheimer, o romance dá uma reviravolta: Nadia quer saber quem realmente foi sua mãe.

Para isso, tenta trilhar o mesmo caminho de Albis. Inclusive, relaciona-se sexualmente com um ex-amante de sua mãe, Paolo, em um momento que Nadia considerava epifânico devido ao objetivo que ela tem (de descobrir quem era Albis), mas que não é alcançado. Mais tarde, Nadia descobre que este homem é o seu verdadeiro pai.

Quando consegue trazer a mãe de volta a Cuba, Nadia fica em segundo plano no romance. É a história de Cuba (principalmente antes e pouco após a revolução de 1959) que vem à tona, a partir de anotações e gravações que a mãe dela trouxe e do original de um livro que escreveu sobre Celia Sánchez, a mulher que esteve ao lado de Fidel Castro durante a revolução e que hoje muitos apontam como sendo amante dele, embora o livro de Wendy não diga isso de forma direta. Na vida real, Albis Torres fugiu de Cuba após terem destruído o projeto do livro sobre Celia.

Somente na terceira parte da obra o nome Fidel é citado. Em entrevistas, Wendy Guerra diz que não tinha interesse em fazer críticas ao governo. Difícil de acreditar. Afinal, desde o início da obra, isso é feito de forma indireta. Nadia não fala de ações governamentais que possam ter prejudicado a população, mas descreve como o povo vive e o mostra como vítima, embora não diga de forma direta quem é o seu algoz. Sutilezas no texto tornam-se críticas ácidas aos olhos do leitor mais atento. A respeito de uma instalação sua, Nadia escreve: “Os jornalistas comentam a Biblioteca Branca que construí, um lugar imaculado no qual livros, papéis, documentos, lombadas e capas estão em branco. O mobiliário pronto para ser lido, pronto para informar; em compensação, não há nada dentro dele”. Encontra-se muito de Wendy nessa frase, já nenhum de seus cinco livros (três de poesias e dois romances) foi publicado em Cuba.

Em seu diário, Nadia faz reflexões acerca da vida da população, o que leva o leitor a também pensar a respeito do assunto. “Juntos, cultivamos a arte da ‘perda necessária’. Mas as perdas são necessárias?” Nadia não se propõe a dar respostas, apenas lança questões como se estivesse desesperada para que alguém lhe respondesse.

Dessa forma, Wendy cumpre, em parte, o que já disse em entrevistas, de que o livro foi escrito “para os cubanos e pelos cubanos”. “Desde menina, repito seus nomes como um robô”, diz Nadia acerca dos heróis da revolução.
Não esquecendo o lado poeta, do qual Wendy já confessou gostar mais, a autora lança mão de figuras de linguagem, especialmente metáforas, comparações, sinestesias e prosopopeias. Por vezes, o texto em formato de prosa soa como poesia. “Minha dor é salgada” e “som que golpeia a testa” são alguns exmeplos.

Nunca Fui Primeira-Dama também pode servir de ponto de partida para quem deseja conhecer melhor a cultura cubana. Diversos locais, como o Museu de Belas-Artes, e artistas, como Célia Cruz, são citados. Espalhados ao longo de toda a obra, trechos de músicas de artistas cubanos servem como complemento ao assunto narrado.

Em uma passagem do livro, Nadia se revolta contra a censura sofrida pela mãe, impossibilitada de publicar o livro sobre Celia Sánchez. “Pergunto-me quando vão deixá-los sobvreviver nas alfândegas, ou em que momento vão ser editados em Cuba de uma vez por todas. Nem mais um livro escondido, nem mais uma palavra silenciada. Esse é o meu maior desejo como cidadã”. Praticamente um grito autobiográfico de Wendy Guerra.